Sobre devorar e ler


Os recentes acontecimentos no país reacendeu um antigo hábito, perigoso e devastador: minha impulsão por ler. Cheguei a pedir para amigos para que parassem de postar textos interessantes, porque não aguentava mais ler. 

Ler para mim é uma doença, transmitida por minha mãe que sempre contaminou a casa com livros, jornais, revistas. E ainda contagia: eu sofro, porque não consigo parar de ler. 

Sem saber, me sentia como o pequeno Henry, o guri que adorava devorar livros. Quanto mais os comia, mais esperto ficava, até que um dia começou a passar mal do estômago: toda a informação que engolira estava tão confusa lá dentro que ele não conseguia mais digeri-la.



Não sei quanto a Henry, mas quanto mais leio, mais sofro, pois sou da teoria de que se lê um pouco e se acredita, mas se lê um pouco mais e se duvida. Essa crença sempre me instigou, portanto, a ler mais e mais, como se em algum momento fosse encontrar, enfim, a verdade.

O problema é que essa verdade não chega nunca: perdi a conta de quantos artigos li hoje quer em português, inglês ou alemão sobre as manifestações. Um levava a outro de forma que passei horas neste ciclo nervoso. Esta compulsão me fez lembrar da minha relação com os livros. 

Acredito que não tinha nem 15 anos quando li Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída. Milan Kundera também veio à esta época. Pode conceber a sensação que tive quando li sobre o sonho de Tereza em que enfiava agulha sob as unhas? 

Para sufocar a dor da alma com uma dor física, enfiou agulhas sob as unhas. Senti uma dor atroz disse ela, apertando os pulsos como se as mãos tivessem sido realmente machucadas. (A insustentável Leveza do Ser, M. Kundera, cap. 7)

Tinha então pouco mais de 20 quando contemplei Sartre e 22, Saramago. Goethe veio também nesta fase, junto com Nietszche. Platão, seis anos antes, embora tenha lido apenas partes. Aristótoles li muito, lembro pouco. Nunca fui de ler mais de um livro de um mesmo autor, mas Hesse foi a exceção: aos 18, li 4 dele. Acalmou-me o espírito depois de cair doente com Dostoiévski um ano antes, acho. 

Há muitos livros, em diferentes fases da minha vida, que abriram as portas uns para os outros. Fiz um balanço dos últimos anos aqui.

Mas um livro sempre se transforma em indagações ruminantes dentro de mim: depois de tanto mastigar a mesma questão e finalmente engoli-la, ela volta com a leitura de um novo livro. Você consegue imaginar este processo incessante? É perturbador. Por isso, parei de ler por muitos anos. 

O hiato perdurou dos meus 22 aos 26. Aparte daquelas obras exigidas pela universidade, sentia-me covarde para ler um novo livro que me lançasse à reflexão. Isso mesmo, estava com medo de ler, de aprender, de abrir a cabeça. Desculpe-me, era o receio de me tornar um bicho outra vez.

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