Primeiro eles vieram...







O universo converge de várias maneiras. Uma delas é a forma como o ser humano lida com o outro. Do que tenho visto e lido, certos comportamentos independem da época ou cultura em que um determinado indivíduo está situado: ele terá atitudes que parecem inatas à sua condição sapiens sapiens. Darei alguns exemplos.

Kitty Genovese

Em 1964, uma jovem chamada Catherine Genovese, conhecida por Kitty Genovese, estava indo para casa após sair de seu trabalho como garçonete em um restaurante de Nova Iorque. Já era tarde da noite e a rua do bairro Queens onde morava estava totalmente deserta quando, a apenas 30 metros da entrada do seu prédio, ela viu um homem desconhecido em seu caminho. Kitty mudou de direção, mas o homem a alcançou e a agarrou. Ela gritou e luzes de apartamentos próximos ao local se acenderam, espantando o agressor. No entanto, antes de conseguir chegar até sua casa ou buscar outro lugar seguro, o homem voltou e a atacou novamente. Em meios aos gritos de Kitty, as luzes voltaram a se acender e, desta vez, um vizinho se debruçou na janela e gritou com o agressor para que deixasse a moça em paz

Kitty Genovese evizinhança onde ocorreu seu ataque
As luzes se apagaram. Kitty, então, tentou se refugiar no saguão de um prédio, para onde o agressor retornou, desferiu-lhe mais algumas facadas, abusou-a sexualmente e roubou-lhe 49 dólares da bolsa antes de finalmente assassiná-la. As janelas se abriram a tempo de os moradores verem o agressor entrar em seu carro e ir embora. 

O que mais chamou atenção neste caso foi o fato de que apesar dos gritos de Kitty e aparte do homem que se limitou a abrir a janela para pedir para que se parasse a agressão, ninguém ligou para a polícia, ainda que toda a história tenha durado cerca de 30 minutos.

Quando a polícia começou a investigar o assassinato, identificou 38 testemunhas que moravam nos arredores  e admitiram estar em casa na hora do ocorrido. Um dos interrogados disse que não pôde ouvir os gritos devido ao barulho do ar-condicionado, mesmo que se tratasse de uma noite gélida. 

Este caso que ficou bastante conhecido e chocou a sociedade na época levou a criação da expressão "Síndrome de Genovese" e do termo "apatia do espectador" usado para descrever a não-intervenção dos espectadores em uma situação de emergência e será adotada nos próximos exemplos.


Nicole Bahls e Gerald Thomas

Em meados de abril de 2013, quase 50 anos depois do caso Genovese, o diretor de teatro brasileiro Gerald Thomas vem ao país para lançar seu livro no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Entre os convidados estava Nicole Bahls, apresentadora no programa Pânico na Band. Quando Nicole começou a entrevistar o autor teatral, ele enfia a mão dentro do vestido da moça. E continua a enfiar em uma cena patética que decorre por alguns minutos. 

Não quero entrar no mérito da polêmica que se desenrolou depois disso, com Nicole declarando para o iG que "dentro dos contextos de família, fiquei chocada", mas que pensou um pouco melhor e "acho que faz parte do personagem" ao passo que Gerald alegava/vangoloriava-se que "meteu a mão na menina", mas que "tudo termina em panos quentes", como tudo mais no Brasil, um “paisinho de quarto mundo". 

O que me interessa aqui é o fato de que nenhum dos outros convidados, incluindo o repórter e colega da apresentadora que acompanhava a cena, fez nada contundente contra a invasão além de rir, Nicole inclusa, enquanto Gerald dizia: "Deixa eu ver o quê que tem aqui embaixo". 

Pergunto-me: o que ela poderia ter feito? Afastado-se violentamente e dado um belo de um tapa na cara dele? Sim. Absolutamente. Acho que é isso que ela deveria ter feito. Se ela não o fez, segundo Gerald e alguns críticos do seu escalão que li por aí é porque ela estava gostando. Afinal, estava rindo. Ora, por que então, Nicole abaixava o vestido contra a investida inescrupulosa dele? E se gostava tanto, por que não trocaram telefones para que pudessem terminar aquilo em um local privado, onde as pessoas que concordam mutuamente em um se aventurar sobre o corpo do outro geralmente fazem?


Bom, para mim a razão mais plausivel pela qual Nicole não limitou a atitude de Gerald não é porque ela estava travestida de seu personagem, como alegou - provavelmente após ser orientada a fazer -, mas pelo que li em algum lugar: talvez a apresentadora tenha passado por uma situação similar a de pessoas no momento do afogamento primário: desencadeia-se um trauma provocado por uma situação inesperada que foge ao controle da pessoa e a leva a se afogar sabendo ou não nadar. Tal é o estado de choque da pessoa que ela sequer consegue pedir ajuda. Guardas salva-vidas são preparados para identificar esse tipo de afogados. Em geral, as demais pessoas que presenciam esse tipo de situação ficam inertes, quer seja por igual choque, quer pela incapacidade de ajudar. Pergunto-me, no caso Bahls-Gerald, o que terá refreado as pessoas em impedir aquilo de acontecer. 

Turista americana e van do terror

Em maio de 2013, uma americana e seu namorado francês embarcam em uma van clandestina em Copacabana com destino à Lapa, no Rio de Janeiro. No bairro de Botafogo, os três homens que conduziam o transporte anunciam assalto, ordenam que os demais passageiros desçam e seguem viagem apenas com o casal de turistas.

Em seguida, os três homens revezam na direção do veículo para de dois em dois estuprar a jovem e agredir seu namorado algemado. No percurso, os agressores passaram em uma favela onde deixariam um pacote. Como à essa altura já não bastava ter se apoderado do corpo da jovem americana, acharam-se, pois, donos também da sua vida e a a ofereceram como parte da "negociação". O interlocutor da transação rejeitou a proposta e ainda teria rido disso, segundo consta do depoimento do menor que participou da agressão. O grupo continua a viagem por diversos pontos da cidade, abastecendo em postos de gasolina, comprando bebidas alcóolicas e energéticos e sacando dinheiro com cartões das vítimas. 

Audaciosos, chegaram a ir ao apartamento das vítimas para buscar mais cartões. Foi a jovem quem subiu até o apartamento enquanto o namorado era mantido como refém. Embora tivera chance de fugir ou pedir ajuda, optou por silenciar porque acreditava que o rapaz seria assassinado. Finalmente, após seis horas mantido refém, o casal foi abandonado em uma rodovia em Itaboraí, a cerca de 15 quilômetros do Centro do Rio. 

As investigações do caso indicam que os agressores agiam com o mesmo modus operandis há cerca de um ano. Isso mesmo: mesmo modo [assalto seguido de estupro] há um ano. Doze meses. Assalto. Seguido de estupro. Quando identificados, os acusados foram reconhecidos por duas brasileiras que afirmam ter sido violentada pelo mesmo grupo. Outras seis vítimas procuraram a polícia para denunciar que também foram assaltadas na mesma van, em datas diferentes. Tudo isso antes do evento bárbaro com os turistas. 

O que pouca gente sabe é que os demais ocupantes, após serem liberados, seguiram para um baile funk. Isso mesmo. Em vez de ligarem para a polícia, avisando que foram assaltados dentro de uma "van assim-assado" e foram soltos em um "local tal", mas que dois turistas tinham sido mantidos no veículo, logo algo de terrível poderia acontecer a eles, a melhor alternativa foi cuidarem da sua própria vida, que se resumia a um baile. 

É possível que esses passageiros pensaram que não tinham nada a ver com aquele casal de gringo, ou sequer jamais passou pela sua cabeça o que aconteceu em seguida. Considerando que não se importaram com o fato de eles próprios terem sido assaltados, ou seja, não zelavam pela sua própria segurança, quiçá a de desconhecidos. Isso é grave. Gravíssimo.

Isso não se trata de apatia como no caso de Genovese, nem de apatia no de Bahls. Trata-se de... sei lá o quê. Talvez um novo estágio de falta de caridade com o outro que supera minha capacidade de tentar descrevê-lo em palavras ou mesmo de encontrar uma explicação lógica em ciência como a psicologia. 

Skinhead e morador de rua

Em abril deste ano a imagem em que um skinhead aparece enforcando um morador de rua com uma corrente na região Centro-Sul de Belo Horizonte, Minas gerais, causou a revolta de muitas pessoas.

O próprio autor da fotografia, Antônio Donato Baudson Peret, de 24 anos, foi quem a postou em seu perfil  no Facebook com a legenda: "quer fumar crackinho, quer? em meio a praça pública cheia de criança? acho que não". Depois de ver sua atitude tomar proporções drásticas, Donato apagou a postagem, a qual não obstante continuou a ser disseminada após uma outra pessoa salvar a imagem e compartilhá-la nas redes sociais. 

À essa altura, com os demais casos que citei, não é de se surpreender que Donato já tinha sido preso uma vez por esfaquear um homossexual e outra por agredir skatistas na avenida Paulista, em São Paulo. Em ambas as vezes foi liberado após a prisão. Um rapaz relatou também ter sido vítima de Donato em 2011 quando andava na rua com um amigo negro. Após ser espancado por um grupo em que o skinhead fazia parte, o jovem chegou a registrar um Boletim de Ocorrência, mas não viu nenhuma providência ser tomada.

No caso de Donato, dois tipos de espectador me chamam a atenção: o do que tira a foto, o qual é ativo e passivo e, obviamente, concorda com tal atitude. Contra este, não há nada que se pode fazer. Agora, quanto aos dois que aparecem claramente na imagem, sendo que um está tirando foto e o outro que assisti pacifica e passivamente à cena, são estes que me preocupam. 


Inércia? Apatia? Muitos estudiosos do tema consideram o seguinte problema: por que as pessoas ajudam ou não ajudam em uma emergência? As quatro situações acima mostram que indivíduos estiveram em dificuldades, mas os espectadores não se envolveram. 

De mãos dadas com Maiakóvski?

A apatia do espectador pode ser diretamente analisada com a intervenção do espectador, que é o ato de ajudar estranhos em uma emergência. Trata-se de uma forma do nosso comportamento altruísta, que por sua vez é percebido como qualquer comportamento dedicado a ajudar os outros independente de interesse  próprios. Outro dia postei, por exemplo, sobre minha atitude em ajudar um cadeirante a atravessar uma via de Brasília, onde moro. 

Mas talvez esteja esperando demais do comportamento pró-social, isto é, um comportamento que é socialmente aceitável e desejável que de algum modo beneficia outra pessoa ou mesmo a sociedade como um todo. Isso pode ser manifestado de várias formas, desde a atitude mais heróica e aparentemente irracional como se lançar em um prédio em chamas para resgatar alguém que ficou para trás até a mais simples como segurar a porta do elevador para um estranho. 

Macaco salva filhote de cachorro em explosão na China, em 2010.
O altruísmo é, portanto, constituído de pequenos e grandes atos de ajuda, sendo "medido" ao se observar se as pessoas ajudarão alguém que esteja em dificuldades justamente a partir da "intervenção do espectador". O que vem contra este comportamento é justamente a apatia do espectador, que estimula ou inibe o altruísmo. Se pensarmos nos casos de Kitty, Bahls-Gerald, turistas no Rio e o morador de rua de Belo Horizonte, vemos que os espectadores de cada uma dessas situações contribuíram em menor ou maior grau para o infortuito de suas vítimas. 

Mas, quando se cai no fenômeno da apatia, é claro que se deve considerar por que alguém intervém ou não em certos tipos de circunstâncias: por que os demais passageiros da van não denunciaram o assalto para a polícia? Por que aqueles que presenciaram o ato de Gerald contra Bahls não o impediram? 

Eu prefiro não especular muito sobre o caso dos passageiros liberados, mas no de Bahls-Gerald a situação é mais complexa e é necessário reconhecer que é uma daquelas em que parece ser ambígua, ou seja, devido ao seu teor duvidoso, as pessoas pensam duas vezes antes de tomar uma atitude. Um exemplo clássico é o de diabético que repetinamente sofre um choque de insulina, cujas principais sintomas lembram os de um sujeito alcoolizado, inclusive o hálito adocicado. Espectadores de uma situação como essa que desconheçam o estado clínico do diabético certamente  se deixarão guiar pelas suas percepções e se esquivarão de oferecer ajudar pela mera má interpretação do problema ou porque simplesmente não percebem a gravidade da situação. Da mesma forma, pelo fato de que Bahls estava sorrindo e não ter tomado uma medida claramente repreensiva contra Gerald,  os espectadores dessa situação imaginaram que não precisaram ajudá-la.

É importante deixar claro que ver um bêbado em situação de risco ou uma mulher bonita sendo assediada sem fazer nada não é normal, aceitável nem desejável. Entendo que estamos inseridos em um espaço urbano, compartilhado tanto por trabalhadores e estudantes quanto por moradores de ruas bêbados e drogados ou criminosos, o que favorece o sentimento de desumanização coletiva pela falta identificação de um grupo com o outro. Para agravar, a inércia dos espectadores do primeiro grupo em relação ao segundo pode ser exacerbada pelo medo por sua própria segurança. O problema é que enquanto se difunde esse medo, as pessoas seguem suas vidas, alheias às das demais, mesmo que estejam bem embaixo do seu nariz, ou no meio do caminho, como os pedestres de Nova Iorque que em abril de 2010 ignoraram um homem agonizar após ser agredido ao impedir uma mulher de ser assaltada.

Um homem observa enquanto o outro agoniza em Queens, Nova Iorque
Além disso, a falta de intervenção em momentos críticos como esses geralmente se dá pela difusão da responsabilidade, a qual é uma diminuição do senso de responsabilidade de um indivíduo em uma situação que envolve outras pessoas. Como as emergências em geral se apresentam de forma inesperada, muitos se sentem inseguros sobre como reagir diante de uma situação em que alguém precisa de ajuda. Desta forma, a maioria dos espectadores na maioria das vezes esperarão a reação dos outros para determinar se tomará partido ou não. Prova é que ninguém reagiu no caso de Genovese, Nicole, turistas na van, morador de rua de Belo Horizonte ou agonizante de Nova Iorque. A questão é que de tanto difundir nossa responsabilidade,  acabamos por dispersá-la totalmente a ponto de ninguém se importar, intervir.

Outras razões possíveis para a não-intervenção, porém, incluem a falta de habilidades específicas: no exemplo do diabético, mesmo um familiar ciente do estado da vítima se vê impelido a ajudar por simplesmente se considerar incapaz de tomar as medidas necessárias em uma situação como essa. Assim, a não-intervenção pode também ser reflexo de fatores que nada têm a ver com falta de interesse: em geral, as pessoas olham umas as outras buscando um sinal de como agir, uma aprovação ou influência social. Na ausência de um reforço positivo, conclui-se que não há porque intervir. No caso de Kitty, algumas testemunhas supuseram que alguém já tivesse chamado a polícia e, por isso, não o fizeram.

Aparte de tudo isso, algumas pessoas, mais corajosas e independentes da opinião do outro, simplesmente saem do seu estado de inércia e, sem razão aparente, cuja atitude mais racional é agir por impulso e instinto, lançam-se a resgatar o indivíduo em perigo. Um jovem que participava de uma entrevista da Heineken ilustra esse tipo de desprendimento

Rapaz que se ofereceu a ajudar um "suposto" suicida consegue cargo na Heineken
Aqui, se reconhece que a apatia, às vezes, dá-se por falta de empatia. Se não há identificação com uma situação/uma vítima, as chances de ignorá-las são grandes. Há que se considerar, porém, que desvencilhar sistematicamente de prestar socorro ou um mero ato de gentileza, pode um dia virar o jogo contra nós, como no poema atribuído ao pastor luterano alemão Martin Niemöller na época do nazismo que alude "um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu. Como não sou judeu, não impedi. No dia seguinte vieram e levaram meu outro vizinho que era comunista. Como não sou comunista, não impedi. No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho católico. Como não sou católico, não impedi. No quarto dia, vieram e me levaram; já não havia mais ninguém para impedir".

Por fim, a recusa em mudar nosso estado de empatia/apatia, pode nos levar a percorrer "[n]o caminho, com Maiakóvski", tal qual no poema de Eduardo Alves da Costa: "Assim como a criança / humildemente afaga / a imagem do herói, / assim me aproximo de ti, Maiakóvski. / Não importa o que me possa acontecer / por andar ombro a ombro com um poeta soviético. / Lendo teus versos, / aprendi a ter coragem. / Tu sabes, / conheces melhor do que eu / a velha história. / Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem; / pisam as flores, /matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz, e, /conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. /E já não podemos dizer  nada. Nos dias que correm a ninguém é dado / repousar a cabeça / alheia ao terror. / Os humildes baixam a cerviz; / e nós, que não temos pacto algum / com os senhores do mundo, / por temor nos calamos. / No silêncio de me quarto / a ousadia me afogueia as faces / e eu fantasio um levante; / mas manhã, / diante do juiz, / talvez meus lábios / calem a verdade / como um foco de germes / capaz de me destruir".

Todas essas situações são muito complexas e exigem diferentes percepções e habilidades para lidar com elas. Não sou nenhuma especialista no assunto, apenas proponho uma reflexão sobre diferentes exemplos de apatia que deram no que deram por me preocupar no que darão os que ainda estão por vir se não pararmos de difundir nossa responsabilidade social já.

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